Tribunal Constitucional, ACÓRDÃO Nº 858/2014 - (inconstitucional) Perda total do direito à pensão pelo período de 4 anos a agente da PSP

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Mensagem por dragao 19/12/2014, 18:11

ACÓRDÃO Nº 858/2014
 

 

Processo n.º 360/2014

3ª Secção

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

 

 

Acordam, na 3ª Secção, no Tribunal Constitucional

 

I - Relatório

1. A. interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra ação de impugnação contra o ato do Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna de 12 de dezembro de 2007, que, em aplicação do artigo 26.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, determinou a perda do direito à pensão de aposentação pelo período de 4 anos em substituição da pena de demissão, pedindo a final a declaração de nulidade e anulação do ato administrativo impugnado e, cumulativamente, o restabelecimento da situação anterior mediante a restituição das pensões que deixaram de ser pagas desde novembro de 2008 ou, pelo menos, desde 1 de janeiro de 2009, com a entrada em vigor da Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas.

A ação foi julgada improcedente por sentença de primeira instância, que foi confirmada, em recurso, por decisão do Tribunal Central Administrativo do Sul, pelo que o autor interpôs recurso excecional de revista para o Supremo Tribunal Administrativo em que, além do mais, suscita a inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 26.º do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, por violação do princípio da dignidade humana no ponto em que implicam a privação total da pensão por período prolongado, sem qualquer limitação que garanta ao aposentado o mínimo necessário à sua subsistência, e a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 35.º do mesmo Regulamento, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, na medida em que a sujeição ao poder disciplinar de agentes da PSP aposentados é discriminatório em relação aos restantes aposentados da função pública, cujas penas disciplinares foram extintas com a entrada em vigor da Lei n.º 58/2008, por força do disposto no seu artigo 8.º, n.º 4.

O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 6 de fevereiro de 2014, negou a revista quanto à primeira das questões suscitadas, em que estava em causa a possibilidade de substituição da pena de demissão pela perda do direito à pensão por um período de 4 anos, baseando-se na jurisprudência do Tribunal Constitucional que incidiu sobre a disposição similar do artigo 15.º do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro. E quanto ao pedido condenatório resultante de facto superveniente – a cessação da execução das penas relativamente a trabalhadores aposentados por efeito do artigo 8.º, n.º 4, do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei n.º 58/2008 -, o Tribunal absteve-se de tomar conhecimento da questão, remetendo a parte para a propositura de ação autónoma.

Desta decisão, o recorrente veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 26.º, n.º1, alínea c), e 35.º, n.º 2, do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, imputando-lhes a violação do princípio do respeito pela dignidade humana, como corolário do princípio do Estado de Direito Democrático ínsito no artigo 2.º da Constituição, e dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

Tendo o recurso prosseguido para apreciação de mérito, o recorrente apresentou alegações em que formula as seguintes conclusões:

 

I. O recurso sub judice destina-se, salvo melhor opinião, a apreciar a constitucionalidade das normas constantes nos artigos 26.º, nº 1, alínea c) e 35º, nº 2 do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, aprovado pela Lei nº 7/1990, de 20 de fevereiro;

II. A Constituição da República Portuguesa funda-se no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), o qual é reconhecido por este tribunal constitucional, na esteira da comissão constitucional (cfr. acórdão n. 479, boletim do ministério da justiça n.º 327, junho de 1983, pág. 424 e seguintes), impondo a satisfação de um mínimo necessário para que cada pessoa tenha uma existência condigna;

III. Essa existência condigna pressupõe a existência de um rendimento mínimo destinado a fazer face às mais elementares necessidades básicas, nomeadamente alimentação;

IV. A perda do direito à pensão, ainda que delimitada a um hiato temporal de 4 (quatro) anos, constitui indubitavelmente uma restrição intolerável face ao princípio da dignidade humana e, bem assim, uma privação in totum dos meios de subsistência do recorrente; v. a manutenção da perda do direito à pensão, ainda que por quatro anos, coloca em causa a dignidade e a sobrevivência do recorrente, o qual não dispõe de outros meios que assegurem a sua subsistência, não pode solicitar qualquer apoio social (por ser beneficiário da caixa geral de aposentações) e foi aposentado na sequência de uma doença invalidante, a qual impede-o de trabalhar;

VI. A situação em apreço (aposentado por doença invalidante), por força do princípio da dignidade humana, não pode ser equiparada a uma situação de despedimento pois que, neste caso, o sujeito da pena disciplinar, embora veja extinto o vínculo à Função Pública, não padece de doença invalidante e continua a ter condições de trabalhar e de prover ao seu sustento;

VII. Em consequência, in casu, não pode deixar de ser considerada desproporcionada e violadora do princípio da dignidade humana a aplicação de uma sanção de perda de aposentação a um aposentado por doença invalidante, como é o caso do recorrente;

VIII. deve, pois, considerar-se inconstitucional, por violação do princípio constitucional do respeito pela dignidade humana, corolário do princípio do estado de direito democrático, enunciado no artigo 2. da constituição da república portuguesa, com afloramentos nos números dois e três do artigo 26.º daquela Lei Fundamental, a interpretação e aplicação das normas contidas nos artigos 26.2, n. 1, alínea c) e 35.º, n.º 2 do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, aprovado pela Lei n.º 7/1990, de 20 de fevereiro, no sentido de que admitem a aplicação da sanção de perda de aposentação a funcionários da polícia de segurança pública que tenham sido aposentados por doença invalidante;

IX. O ora recorrente considera igualmente que, com a entrada em vigor da Lei n. 12-A/2008, de 27 de fevereiro e ainda com a entrada em vigor da Lei n.º58/2008, de 9 de setembro, a sanção de perda do direito à aposentação, pelo período de quatro anos, que lhe foi aplicada tornou-se inconstitucional, pelo menos a partir do dia 1 de janeiro de 2009, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade;

X. A entrada em vigor do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas adotou o princípio juslaboral que prescreve que o empregador só tem poder disciplinar sobre o trabalhador que se encontre ao seu serviço. Tal estatuto foi aprovado pela Lei n.º 58/2008 que impõe, no seu artigo 4.º, n.º 8, que cessa imediatamente a execução das penas e a produção dos respetivos efeitos que se encontrem em curso relativamente a trabalhadores aposentados, desde que não tenham constituído nova relação jurídica de emprego;

XI. O digno magistrado do ministério público, no âmbito do douto parecer que antecedeu o acórdão recorrido (cfr. documento n.º 1 que ora se junta) considerou, desde logo, que porém, a evolução do direito disciplinar sancionatório disciplinar decorrente da Lei 52/2008 não pode deixar de impor nova reflexão sobre a matéria. na verdade, conquanto o recorrente esteja sujeito a um estatuto disciplinar especial, excluído da aplicação subjetiva do estatuto aplicado põe aquela Lei (artigo 1.º, n. 3), nada parece justificar a diferença de tratamento que passa a existir em matéria tão relevante, quando, anteriormente, não havia distinção relativamente aos funcionários em geral (cfr. artigo 15. º/3 do DL 24/84, de 16/1).

XII. Com efeito, o pessoal policial passou a estar expressamente sujeito ao novo regime de vinculação dos trabalhadores que exercem funções públicas constante da própria Lei n.º 12- A/2008 (cfr. artigo 10.º, alínea e)), cessando a relação jurídica de emprego público com a passagem à condição de aposentado, à semelhança do que sucede no regime de direito laboral privado, pelo que não faz qualquer sentido que lhe possam ser aplicadas sanções disciplinares (cfr. artigos 31.º e seguintes da Lei 12-A/2008, mormente o artigo 32.º, n.º1, alíneas d) e f));

XIII. Ora, por força dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, as regras para aposentados da Função Pública não podem deixar de ser aplicadas aos trabalhadores aposentados da PSP (ainda que estes disponham, com a mera força de Lei, de um regulamento disciplinar especial), sob pena da existência de um tratamento diferenciado e discriminatório;

XIV. Com efeito, as considerações que podem fundamentar a existência de um estatuto disciplinar especial para os agentes da PSP não permitem compreender que estes, uma vez cessada a relação jurídica de emprego (cfr. art.º 32/1/d) e f) da Lei 12-A/2008, de 27/2, para a nomeação) percam o direito à pensão de aposentação durante 4 anos. em substituição da pena de demissão. quando essa substituição deixou de aplicar-se à generalidade dos trabalhadores aposentados que exercem funções públicas, por forca do estatuto disciplinar aprovado pela Lei 58/2008, determinando ainda esta Lei, no seu artigo 4.º/8, que «cessa imediatamente a execução das penas e a produção dos respetivos efeitos que se encontrem em curso relativamente aos trabalhadores aposentados» - douto parecer do digno magistrado do ministério público junto do Supremo Tribunal Administrativo (cfr. doc. 1 já junto).

XV. A não ser assim, ficariam gravemente postos em causa os preditos princípios axiológicos e, bem assim, os respetivos direitos e garantias fundamentais dos aposentados da PSP que seriam gravemente discriminados face aos demais trabalhadores aposentados da Função Pública, implicando uma desigualdade de facto manifestamente injustificada e inaceitável, desde logo no plano económico e social.

XVI. Não se devendo admitir agora, face ao novo regime aprovado pela Lei n.º 58/2008, por razões de evidente e necessária paridade, um tratamento discriminatório dos aposentados da PSP face aos demais aposentados da Função Pública;

XVII. Na verdade, um tratamento discriminatório dos trabalhadores aposentados da PSP teria consequências absurdas e insustentáveis face aos corolários dos preditos princípios, permitindo- se injustificadamente que um aposentado da PSP pudesse ser sujeito (ou continuar a ser alvo da execução) de sanções disciplinares por factos cometidos n0 ativo (seja qual fosse a natureza e gravidade dos factos que lhe fossem imputados) um aposentado sujeito ao regime disciplinar geral da Função Pública não sofresse quaisquer consequências disciplinares por factos cometidos no ativo (seja qual fosse a natureza ou gravidade dos factos que lhe fossem imputados!);

XVIII. E isto mesmo porque, como já se referiu, de acordo com o disposto nessa Lei n.º12-A/2008, também os aposentados da PSP passam a considerar-se, para todos os efeitos, totalmente desligados da Função Pública em virtude da sua passagem à aposentação - cfr. artigo 32.º, n.º1, alínea f);

XIX. A proibição do arbítrio legislativo e de tratamento diferenciado injustificado a trabalhadores aposentados da PSP saiu reforçada com a entrada com a entrada em vigor da nova Lei n.º12-A/2008, ao abrigo da qual o pessoal da PSP passou a ficar sujeito ao mesmo regime de emprego público que os demais Trabalhadores da Função Pública, estabelecendo-se, assim, uma equiparação total entre todos os funcionários públicos e não se justificando um tratamento diferenciado dos aposentados da PSP, desde logo, em termos de vinculação;

XX. Uma segunda vertente do princípio da igualdade é encontrada no n.º 1 do artigo 21.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, consistente na proibição de qualquer discriminação. no mesmo sentido, o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem o qual, numa formulação mais abrangente, proíbe a discriminação (...) em função de qualquer situação;

XXI. Denote-se que o conjunto de fatores de discriminação indicados no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa não tem um caráter exaustivo, pelo que são igualmente ilícitas as diferenciações de tratamento fundadas em outros motivos que sejam contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do estado de direito democrático ou arbitrários;

XXII. Ora, conforme salienta este venerando Tribunal Constitucional, “na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à Lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da Lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio. no mesmo sentido, o que importa é que não se discrimine para discriminar”

XXIII. Assim, a aplicação do artigo 26/1/c) do RD/PSP importa a violação do princípio constitucional da igualdade, por falta de fundamento material diferenciador. que possa justificar racionalmente a diferença de tratamento relativamente à generalidade dos trabalhadores que exercem funções públicas (...) no caso, uma tal diferenciação, ainda que pudesse encontrar alguma justificação na especialidade do estatuto da PSP, quando proporcional a essa especialidade (e não encontra), claramente «ultrapassa os limites da proibição 00 excesso em termos de igualdade proporcional» - conforme acórdão citado, conforme defendido e pugnado pelo digno magistrado do ministério público, no âmbito do douto parecer que antecedeu o acórdão recorrido.

XXIV. Para o efeito, o digno magistrado do ministério público socorreu-se do douto acórdão deste Tribunal Constitucional (n.º 353/2012), o qual sustenta que: a igualdade jurídica é sempre uma igualdade proporcional, pelo que a desigualdade justificada pela diferença de situações não está imune a um juízo de proporcionalidade. a dimensão da desigualdade do tratamento tem que ser proporcionada às razões que justificam esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva;

XXV. Aqui se invoca precisamente e com o maior respeito o doutíssimo entendimento ali perfilhado;

XXVI. Inexistindo fundamento material diferenciador que justifique a diferença de tratamento dos aposentados da polícia de segurança pública relativamente à generalidade dos aposentados da Função Pública, impõe-se que as normas contidas nos artigos 26º., n.º 1, alínea c) e 35.º, n.º 2 do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, aprovado pela Lei n.º 7/1990, de 20 de fevereiro, sejam consideradas inconstitucionais por violarem os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

 

O Ministério da Administração Interna contra-alegou, concluindo do seguinte modo:

 

1. Quanto à alegada violação do respeito da dignidade humana, refere-se no acórdão proferido no recurso n.° 1058/06, disponível no sítio da DGSI, “...uma pena de privação de uma pensão de aposentação (...) pode vir a afetar as condições mínimas de subsistência do seu destinatário, mas o certo é que também o pode a pena de demissão de um funcionário no ativo, ou mesmo a pena de inatividade por período longo, já que igualmente lhe corresponde perda total da remuneração, de modo definitivo ou temporário. E pode bem acontecer que o destinatário dessa pena não lenha outros meios de subsistência, nem possibilidade de os angariar. Teríamos então de considerar inconstitucional qualquer pena disciplinar que privasse o seu destinatário de um mínimo de subsistência durante um período longo de tempo, o que não parece razoável, pois estamos no campo do direito sancionatório disciplinar, que à semelhança do direito criminal, é eticamente fundado, na medida em que protege valores de obediência e disciplina, no quadro de um serviço público, necessários para o seu perfeito funcionamento e, portanto, visa também dar satisfação a um interesse público de punir (e não só prevenir) as infrações violadoras de determinados deveres funcionais, não sendo, portanto, sua finalidade assegurar aquele mínimo de subsistência aos infratores.

2. Não fará sentido pensar que, o agente da autoridade que foi condenado por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de prevaricação e denegação de justiça, p. e p. pelo artigo 369°, n°4 do C.P., na pena de 16 (dezasseis) meses, de prisão (suspensa pelo período de dois anos), poderá não ver a sua conduta sancionada porque, entretanto, passou à situação de reforma.

3. O princípio da igualdade enquanto limite à discricionariedade legislativa, não exige o tratamento igual de todas as situações, mas, antes, implica que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material bastante. O princípio da igualdade não proíbe que se estabeleçam distinções, mas sim, distinções desprovidas de justificação objetiva e racional, o que não sucede in casu, como atrás ficou demonstrado.

4. A existência de um regime especial encontra escoro no que é a caracterização das funções que competem a um agente das forças policiais, motivo pelo qual não se pode falar na violação do princípio da igualdade (é porque têm esta especial posição de garante da legalidade democrática, entre outros, que sobre si recaem deveres especiais).

5. Conforme se conclui no Acórdão proferido pelo TCAS, no âmbito do presente processo, A CRP e a nova legislação dos trabalhadores das Administrações Públicas não impedem a existência de estatutos disciplinares específicos e mais exigentes nas carreiras especiais, nomeadamente quanto ao poder disciplinar no período da aposentação

6. O agente em apreço foi condenado pela prática de um crime de prevaricação e denegação de justiça, p. e p. pelo artigo 369°, n°4 do C.P., na pena de 16 (dezasseis) meses, de prisão (embora suspensa pelo período de dois anos);

7. Nos termos dos n.° 1 e al. a) do n.° 2 do artigo 47°, do RD/PSP, "...As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.

As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao funcionário ou agente que, nomeadamente: (...) a) Usar de poderes de autoridade não conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções, excedendo os limites do estritamente necessário, quando seja indispensável o uso de meios de coerção ou de quaisquer outros suscetíveis de ofenderem os direitos do cidadão,• os factos praticados pelo ora recorrido são inviabilizadores da relação funcional, motivo pelo qual lhe foi aplicada a pena de demissão, sendo a mesma substituída pela perda de pensão peio período de 4 anos, nos termos da al. c), do n.° 1 do artigo 26° do RD/PSP, em virtude da sua passagem à situação de aposentação, não se verificando, por isso, qualquer violação do princípio da proporcionalidade.

 

Por determinação do relator, foi o recorrente notificado para se pronunciar, querendo, quanto à possibilidade de se não tomar conhecimento do recurso em relação às normas que constituem seu objeto, na parte em que possam representar um tratamento discriminatório em relação aos aposentados da função pública, por efeito da entrada em vigor do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro, por não ter sido produzida qualquer decisão de mérito, nessa parte, pelo tribunal recorrido e o recurso carecer de utilidade.

O recorrente, em resposta, sustenta que invocou tal questão de inconstitucionalidade logo na petição inicial, que foi apreciada pelas instâncias, sem nunca se colocar o problema prévio de uma suposta cumulação ilegal de pedidos. A final, o Supremo Tribunal Administrativo, em vez de absolver a ré da instância, quanto a tal pedido, negou provimento ao recurso, em relação a todas as questões suscitadas, confirmando, assim, integralmente o Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que, além do mais, absolveu a ré desse pedido.

Por isso, conclui, tendo o Tribunal recorrido aplicado, em fundamento jurídico do julgado, as normas sindicadas, que determinaram a sua punição disciplinar, apesar da arguição de inconstitucionalidade, deve o mérito do recurso ser apreciado, também nessa parte, por revestir utilidade.

Cabe apreciar e decidir.

II Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

2. O recorrente interpôs ação de impugnação contra a decisão disciplinar que determinou a perda do direito à pensão de aposentação pelo período de 4 anos em substituição da pena de demissão, pedindo a declaração de nulidade e anulação do ato administrativo impugnado e, cumulativamente, o restabelecimento da situação anterior mediante a restituição das pensões que deixaram de ser pagas desde novembro de 2008 ou, pelo menos, desde 1 de janeiro de 2009, com a entrada em vigor da Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas.

Em recurso de revista, o recorrente suscitou perante o Supremo Tribunal Administrativo a questão de constitucionalidade referente ao artigo 35.º, n.º 2, do Regulamento Disciplinar da PSP, relacionando-a com o pedido cumulativo, formulado na ação, que visava obter a condenação do Ministério da Administração Interna a proceder ao pagamento das pensões a partir de 1 de janeiro de 2009.

Esse pedido tinha por base um facto superveniente, em relação à prática do ato administrativo que era objeto de impugnação contenciosa no processo, resultando de ter sido entretanto aprovado o novo Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, e de ter sido feita cessar a execução das penas que se encontrassem em curso relativamente a trabalhadores aposentados, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 4, do diploma preambular.

E, nesses termos, o pedido era supletivo relativamente a um outro, também deduzido em cumulação, pelo qual o recorrente pretendia o restabelecimento da situação anterior e, assim, a restituição das pensões que tinham deixado de ser processadas e pagas desde novembro de 2008. Enquanto que a reposição das pensões era uma necessária consequência da declaração de nulidade ou de anulação da decisão disciplinar, caso a ação de impugnação fosse julgada procedente, correspondendo a uma reconstituição da situação jurídica violada, a restituição das pensões a partir de 1 de janeiro de 2009 e por efeito do disposto no citado artigo 8.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2008, derivava de um outro fundamento jurídico que não poderia ter sido tomado em consideração no momento em que foi praticado o ato punitivo.

Com base neste enquadramento jurídico, o tribunal recorrido declarou a impossibilidade de apreciar esse pedido condenatório, remetendo o interessado para a propositura de uma ação autónoma em que essa questão possa ser decidida.

Reconhecendo que foi essa a posição assumida pelo Tribunal recorrido, defende o recorrente ser inaceitável um tal entendimento, pelo facto de ter suscitado tal questão logo na petição inicial, que foi conhecida pelas instâncias, sem nunca se levantar a questão prévia de uma suposta cumulação ilegal de pedidos.

Porém, ao Tribunal Constitucional não compete sindicar a bondade de um tal entendimento, atentas as suas competências de fiscalização normativa. Tendo o Tribunal recorrido assim perspetivado juridicamente a ação, considerando que um tal pedido condenatório não podia ser nela formulado e apreciado, torna-se claro, neste contexto, que o recurso de constitucionalidade não tem utilidade quanto à referida norma do artigo 35.º, n.º 2, Regulamento Disciplinar da PSP, porquanto, mesmo que o Tribunal Constitucional viesse a pronunciar-se no sentido da sua inconstitucionalidade, esse juízo não teria qualquer efeito prático sobre a decisão recorrida nem permitiria a reforma do julgado, visto que o tribunal recorrido não chegou a tomar posição quanto à matéria de fundo, no que ao mesmo pedido respeita, por razões de ordem processual que o Tribunal Constitucional não pode sindicar.

Mérito do recurso.

3. O recurso de constitucionalidade restringe-se, nestes termos, à norma do artigo 26.º, n.º 2, alínea c), do Regulamento Disciplinar da PSP aprovada pela Lei n.º 7/90, de 20 de fevereiro.

A disposição é do seguinte teor:

 

Artigo 26.º

Situação de aposentação e de licença ilimitada

1 - Relativamente aos funcionários e agentes aposentados, verificam-se as seguintes especialidades:

a) A pena de suspensão é substituída pela de multa, que não poderá exceder o quantitativo correspondente a 20 dias de pensão;

b) A pena de aposentação compulsiva será substituída pela perda direito à pensão pelo período de três anos;

c) A pena de demissão será substituída pela perda do direito à pensão pelo período de quatro anos.

2 - Aos funcionários e agentes na situação de licença ilimitada são aplicáveis as penas previstas nas alíneas a), b), f) e g) do n.º 1 do artigo 25.º

 

Norma de idêntico alcance constava, sob a epígrafe «Penas aplicáveis a aposentados», do artigo 15.º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de janeiro, que, no seu n.º 3, prescrevia: «[a] pena de demissão determina a suspensão do abono da pensão pelo período de 4 anos».

O recorrente imputa à referida disposição do artigo 26.º, n.º 1, alínea c), a violação do princípio da dignidade humana na medida em que implica a perda de pensão em relação a um aposentado que se encontra afetado por «doença invalidante e que tem na pensão o rendimento essencial e indispensável ao seu sustento». Porém, o acórdão recorrido não toma em consideração a específica situação do interessado, mormente no tocante à situação de incapacidade para o trabalho ou de inexistência de outros meios económicos, limitando-se a considerar transponível para o caso dos autos a jurisprudência do Tribunal Constitucional que se tem pronunciado sobre a conformidade constitucional das disposições que determinam a perda de pensão como consequência de sanção disciplinar em face da garantia do um mínimo de sobrevivência.

Em todo o caso, o tribunal recorrido não considerou a titularidade de património ou de outros rendimentos que pudessem assegurar a satisfação das necessidades vitais essenciais e que permitisse afastar o invocado princípio da dignidade humana, tomando antes como pressuposto fáctico a possível existência de uma situação de carência por perda do direito à pensão.

Nestes termos, a questão de constitucionalidade apenas poderá ser analisada à luz do próprio efeito de direito que diretamente resulta da norma, consistente na supressão do direito à pensão por certo período de tempo com a consequente privação das condições económicas que, substituindo os rendimentos do trabalho, deveriam prover ao sustento do pensionista.

4. O Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre a conformidade constitucional, à luz do direito fundamental a uma existência condigna, de disposições que estabelecem para funcionários aposentados a perda do direito à pensão em substituição da pena de demissão, e fê-lo designadamente através dos acórdãos n.ºs 442/06, 518/06 e 28/07.

Em qualquer desses casos, o Tribunal tomou como ponto de referência a anterior jurisprudência sobre a inconstitucionalidade de normas que permitem a penhora de rendimentos provenientes de pensões sociais ou rendimentos do trabalho de montante não superior ao salário mínimo nacional. Teve especialmente em atenção, nesse confronto, aqueles arestos que se pronunciaram pela não inconstitucionalidade do regime de impenhorabilidade de prestações devidas pelas instituições de segurança social na parte em que visem cumprir a garantia de uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista (acórdãos n.ºs 349/91 e 411/93), ou que vieram a considerar inconstitucionais normas processuais que permitem a penhora de uma parcela da pensão ou do salário cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional (acórdãos n.ºs 177/02 e 62/2002), ou ainda que permitam a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que o prive do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais (acórdão n.º 306/05).

Para concluir, em sentido oposto, pela não inconstitucionalidade de uma medida de perda de pensão aplicável a um funcionário aposentado em consequência da prática de infração disciplinar quando este se encontrava no ativo, o Tribunal deu particular relevo à diferente natureza da situação que está aí em causa. Neste caso, a afetação da pensão de aposentação não resulta de um ato de penhora, visando a satisfação coerciva de um direito de crédito não satisfeito voluntariamente pelo devedor, mas antes de uma pena disciplinar que visa prosseguir fins retributivos e de prevenção geral que ficariam definitivamente prejudicados pela isenção de pena em relação aos agentes da infração que passassem entretanto à situação de aposentados (acórdãos n.ºs 442/06).

Além de que, como também se afirma, nos casos em que da aplicação do regime legal resulte a privação do mínimo considerado indispensável à garantia de uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista, «sempre este poderá recorrer aos mecanismos assistenciais normais, previstos no ordenamento jurídico português, para fazer face a situações de inaceitável carência social, fazendo aí a prova da alegada situação de necessidade», daí se concluindo, em ponderação dos diversos interesses em presença, que não fica violado o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, quando se encontram disponíveis no sistema mecanismos que visam, no limite, assegurar uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista.

Este entendimento jurisprudencial, formulado a propósito do disposto no artigo 15.º do Estatuto Disciplinar de 1984, foi reiterado, em relação à precisa norma do artigo 26.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento Disciplinar da PSP, pelo acórdão n.º 518/06, em que se afirma o seguinte:

Na verdade, o julgamento desta questão distancia-se da solução encontrada quanto à satisfação de um direito de crédito. Aqui, estamos em presença de uma pena disciplinar que visa, dando satisfação a um interesse público, punir uma infração violadora de determinados deveres funcionais, ainda que praticada numa situação de aposentação, na execução da qual é admissível que o arguido suporte um incómodo que se repercuta nas suas condições de vida.

Por outro lado, mesmo no caso em que da aplicação da norma resulte a privação do mínimo considerado indispensável à garantia de uma sobrevivência condigna, sempre o interessado poderá recorrer aos mecanismos assistenciais previstos no ordenamento jurídico, destinados a fazer face a situações de carência económica. Havendo mecanismos que visam assegurar uma sobrevivência minimamente condigna do cidadão, não poderá, com efeito, concluir-se que pela aplicação da questionada norma fica violado o princípio da dignidade da pessoa humana, ou qualquer outro previsto nos artigos 1º, 19º, 26º n.º 3, 59º nºs 1 alínea f) e 2 alínea a) e 63º da Constituição, como alega o recorrente.

5. Ainda que deva reconhecer-se que a perda do direito à pensão como consequência da prática de infração disciplinar e a penhora de salários ou prestações sociais para satisfação coerciva de um direito de crédito se encontram subordinadas a razões de política legislativa com um diferente grau de relevância, o certo é que o direito fundamental a uma existência condigna, como emanação do princípio da dignidade da pessoa humana, quando seja aplicável a qualquer dessas situações, está sujeito a um mesmo critério de ponderação valorativa.

A jurisprudência do Tribunal reconheceu na dignidade da pessoa humana «um verdadeiro princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto de validade das respetivas normas» (acórdão n.º 105/90), diretamente convocável, também na área de tutela atinente às condições materiais de vida. Nessa jurisprudência, o núcleo essencial da garantia de existência condigna, inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana, tem sido perspetivado, de forma reiterada e constante, por referência ao valor do salário mínimo nacional, considerado como «a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador». Por tal valor «ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo» (acórdão n.º 62/2002).

É com base em tal enquadramento que o Tribunal tem entendido que a Constituição impõe a impenhorabilidade de pensões sociais de montante reduzido, que não exceda o salário mínimo nacional, e inviabiliza a penhora de rendimentos do trabalho que possa conduzir à privação da disponibilidade do salário mínimo nacional, quando o devedor não for titular de outros bens ou rendimentos suscetíveis de penhora (acórdão n.º 177/2002). Foi ainda à luz da garantia de um mínimo de sobrevivência que o Tribunal considerou constitucionalmente justificável a imposição legal às entidades seguradoras da atualização anual das pensões por morte causada por acidente de trabalho (acórdão n.º 232/91).

E não se vê nenhum motivo para que este mesmo princípio não seja invocável quando está em causa a supressão da totalidade da pensão de aposentação por um período contínuo de 4 anos, ainda que essa supressão resulte da aplicação de uma medida disciplinar.

As medidas disciplinares visam a proteção da capacidade funcional da Administração e têm como principal finalidade a «prevenção especial ou correção, motivando o agente administrativo que praticou uma infração disciplinar para o cumprimento, no futuro, dos seus deveres, sendo as finalidades retributiva e de prevenção geral só secundária ou acessoriamente realizadas» (LUIS VASCONCELOS DE ABREU, Para o Estudo do Procedimento Disciplinar no Direito Administrativo Português Vigente: as Relações com o Processo Penal, Coimbra, 1993, pág. 43). Assim se explica que as medidas expulsivas sejam aplicadas em caso de infração que inviabilize a manutenção da relação laboral e, portanto, naquelas situações em que o agente, pela sua conduta, mostrou não dar garantias de poder continuar a contribuir para assegurar a capacidade funcional da Administração (artigo 26.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar de 1984, replicado no artigo 18.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar de 2008, e no artigo 187.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas).

Ao contrário, os fins de prevenção geral no âmbito do direito disciplinar encontram-se desde logo comprometidos pela vigência do princípio da oportunidade, pelo qual a Administração dispõe de liberdade para desencadear a perseguição disciplinar de uma infração, cabendo-lhe decidir, em face das circunstâncias do caso, se é conveniente do ponto de vista do interesse público exercer o poder disciplinar. Alguns afloramentos desse princípio encontravam-se nos artigos 50.º, n.º 1, e 57º, n.º 1, do mesmo Estatuto, que  conferiam à entidade competente, logo que seja recebido o auto, participação ou queixa, o poder decidir se há lugar ou não a procedimento disciplinar, e ao instrutor a possibilidade de propor o arquivamento se entendesse que os factos constantes dos autos não constituem infração disciplinar, que não foi o arguido o agente da infração ou que não é de exigir responsabilidade disciplinar por virtude de prescrição ou outro motivo (idem, págs 43 e 51 a 54).

E sublinhe-se que a sujeição ao poder disciplinar dos funcionários e agentes que tivessem passado à situação de aposentados, com a consequente possibilidade de substituição das penas profissionais por sanções de natureza pecuniária, que vigorava no domínio do Estatuto Disciplinar de 1984 (artigos 5.º, n.º 3, e 15.º), deixou de ter aplicação com a aprovação do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei n.º 58/2008, que prevê a extinção da pena com a cessação da relação jurídica de emprego público e desde que esta não volte a ser renovada (artigo 12.º) - o que também explica a cessação da execução das penas em curso, à data da entrada em vigor da Lei, relativamente a trabalhadores aposentados (artigo 4.º, n.º 8, da Lei n.º 58/2008) -, regime que ainda se mantém com a atual Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, como resulta por argumento a contrario sensu do disposto no seu artigo 176.º, n.ºs 3 e 4.

O que significa que o legislador, em consonância com o regime vigente no direito laboral comum, passou a desconsiderar a execução de penas que atinjam o agente na sua carreira profissional ou na sua situação funcional, sempre que se verifique uma outra causa de cessação da relação de emprego (como será o caso da exoneração ou da aposentação), o que aponta para a ideia de que a finalidade característica das medidas disciplinares é a prevenção especial, que deixa de ter cabimento quando o agente se encontre já desligado do serviço ativo.

6. A aplicação de uma sanção que se traduz na privação total  da pensão de aposentação em relação a um funcionário que se encontra já desligado do serviço por  ter passado à situação de aposentado não pode já visar um qualquer efeito de prevenção especial e apenas pode justificar-se por considerações retributivas e de prevenção geral, assentando na necessidade de retribuir o dano causado pelo facto ilícito e de exercer um efeito intimidativo relativamente aos trabalhadores no ativo.

No entanto, a medida, ao implicar a ablação total da pensão, ultrapassa a natureza estritamente pecuniária de uma pena disciplinar e atinge as condições de subsistência do agente, que fica privado, por período prolongado de tempo, da prestação que deveria substituir, por efeito da passagem à aposentação, os rendimentos da atividade profissional. Desse modo, a ablação ocorre não já no quadro da relação de serviço, mas no âmbito da relação jurídica de segurança social, que assenta num princípio de contributividade e que tem pressuposta a direta correlação entre o direito às prestações e a obrigação de contribuir (acórdão n.º 188/2009). 

Além disso, uma medida predeterminada em relação ao montante da pensão declarada perdida e ao tempo de duração da perda do direito, sem qualquer ponderação do efeito que poderá produzir nas condições básicas de vida do arguido, põe em causa o princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade ou exigibilidade, porquanto uma solução legislativa que preservasse um rendimento mínimo destinado a garantir a existência condigna, ainda que prevendo o correspondente alargamento da duração da pena por forma a alcançar a mesma intensidade de sacrifício patrimonial, poderia atingir, com o mesmo grau de eficácia, os fins de retribuição e prevenção geral sem pôr em risco o direito à subsistência.

É, aliás, ilógico e desrazoável que se suprimam as prestações substitutivas dos rendimentos do trabalho cobertas por um sistema previdencial de caráter contributivo e obrigatório, sem qualquer ponderação do resultado negativo que possa ter na situação de vida dos destinatários, e simultaneamente se invoque o direito de assistência material, enquadrado num sistema de proteção social não contributivo e financiado por transferências do Orçamento do Estado, para fazer face às situações de carência que daí possam resultar e assim dar concretização ao direito a uma existência condigna (cfr. artigos 26.º e 90.º, n.º 1, da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro).

O que bem demonstra que a existência de mecanismos de cunho assistencialista, no âmbito do sistema de segurança social, não é por si só determinante para afastar o caráter desnecessário e excessivo de uma medida legislativa que, em si mesma, é suscetível de criar situações de carência e de insegurança material que devam ser reparadas por via dessas outras formas de assistência material.

Não releva, por outro lado, o argumento de que o princípio da existência condigna poderia também inviabilizar a aplicação de penas de demissão. A situação não é, de nenhum modo, equiparável à perda do direito à pensão. Os efeitos patrimoniais da medida expulsiva de demissão, com a supressão das remunerações correspondentes ao exercício do cargo, são a mera consequência da extinção da relação laboral. No entanto, o agente, uma vez que nada impede que retome uma atividade profissional, poderá obter outras fontes de rendimento através do mercado de trabalho, e, em última instância, mantém o direito às prestações substitutivas dos rendimentos do trabalho do subsistema previdencial aplicáveis em caso de desemprego (artigo 52.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 4/2007).

É diferente a situação dos aposentados. Chegado o momento em que cessou a vida ativa e se tornou exigível o direito à pensão de aposentação, o pensionista já não dispõe de mecanismos de autotutela e de adaptação da sua própria conduta a novas circunstâncias, e encontra-se diminuído em razão da idade – como está pressuposto na própria passagem à situação de aposentado – na sua capacidade de ganho. O sacrifício patrimonial que lhe é imposto por força da perda do direito à pensão, por prática de infração disciplinar cometida ainda quando se encontrava no ativo, não é normalmente suscetível de ser ressarcido através de outros recursos económicos a que o interessado possa aceder por meios próprios, e, na ausência de uma cláusula de salvaguarda que evite a supressão total da pensão, coloca-o numa situação de carência que poderá pôr em causa as condições básicas de vida.

Entende-se, por todo o exposto, que a norma do artigo 26.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, na medida em que determina para os funcionários e agentes aposentados a perda do direito à pensão pelo período de 4 anos, em substituição da pena de demissão, sem salvaguardar a perceção de um rendimento mínimo que lhe permita satisfazer as necessidades básicas.

III – Decisão

Termos em que se decide:

a) julgar inconstitucional a norma do artigo 26.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública, na parte em que determina para os funcionários e agentes aposentados a substituição da pena de demissão pela perda total do direito à pensão pelo período de 4 anos, por violação do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 2º da Constituição;

b) revogar a decisão recorrida e determinar a sua reforma de acordo com o julgamento de inconstitucionalidade agora formulado.

Sem custas.

Lisboa, 10 de dezembro de 2014 - Carlos Fernandes Cadilha - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Maria José Rangel de Mesquita - Maria Lúcia Amaral
Fonte: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140858.html
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