Bullying na GNR e PSP: mais de 77% dos polícias que se dizem vítimas não denunciaram

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Importante Bullying na GNR e PSP: mais de 77% dos polícias que se dizem vítimas não denunciaram

Mensagem por dragao Seg 29 Jul 2024, 00:47

Pela primeira vez, os membros da PSP e da GNR foram inquiridos sobre práticas de assédio moral no trabalho. 30% dos respondentes assumiram-se como vítimas. Desses, mais de 10% relataram, como consequência, ideação suicida ou homicida. Só 22,6% denunciaram a situação. Corporações recusaram participar no inquérito.

“No meu local de trabalho já se suicidaram dois militares. Fui o último militar a conversar com o último a cometer a loucura, não fui capaz de perceber nenhum sinal. Estive para ser o terceiro, felizmente tive um camarada que percebeu, e passado algum tempo me permite escrever este texto. Pedi ajuda, sinto que estou a ser bem acompanhado. Mas este problema existe e na maioria fica escondido (…).”

“Opressões constantes e uso negativo da hierarquia promovendo o medo e insegurança nas pessoas. A instituição virou uma prisão, uma sentença…”

“O meu corpo ficava doente ao entrar no quartel. Deixava de ter respostas/funcionamento normal. Os tremores e mal-estar num certo dia de manhã levaram a que não conseguisse conduzir com segurança até ao local de trabalho e a ficar bloqueado dentro do carro a olhar para o final da rua onde se encontrava a entrada do quartel. Nesse momento deu-se a tomada de perceção de que tinha aguentado o suficiente e que tinha que me proteger a todo o custo pois as minhas saúdes físicas e mentais estavam em risco. Seguiu-se o recurso ao apoio médico e a baixa médica. A melhoria foi imediata ao saber que não teria que ir suportar os comportamentos persecutórios e desestabilizadores diários e constantes por parte de um elemento superior hierárquico, comportamento esse que apesar de verificado por outros superiores, nada fizeram para contrariar (…).”

“As queixas e as denúncias de assédios são abafadas e desvalorizadas. É visto como ‘normal’ e disciplinador práticas que na lei são claramente crime de assédio. Estas práticas são incentivadas e valorizadas pelas chefias.”

“As intimidações e ameaças de superiores hierárquicos são frequentes, mas de difícil comprovação pois estão camufladas por detrás da função e posto que ocupam, em especial por parecerem pessoas urbanas e de educação elevada, no entanto por vezes não passam de uns narcisistas (…).”

“Como experiência pessoal, posso reportar que pelo menos dois comandantes de unidade diagnosticaram seus militares como tendo patologias do foro psiquiátrico ou outro do género, pelo simples facto de esses mesmos militares confrontarem de forma assertiva as decisões do comando, e este por inércia e incapacidade de fazer melhor rotulou os militares e enviou-os para o centro clínico para receberem tratamento e afastá-los do serviço, quando na verdade o desequilibrado mental, por força do seu autoritarismo medieval, era o próprio comandante. Como se manda um comandante para o centro clínico para tratamento? Como se exonera um ignóbil desses?”

“Era necessário rever os critérios de seleção daqueles que querem desempenhar cargos de chefia, bem como a forma como são avaliados os desempenhos daqueles que lideram, porque não basta tirar uma nota positiva num teste escrito para poder liderar homens.”

“Infelizmente, no meio onde trabalho, temos que aguentar sem denunciar por causa das represálias. Não temos quem nos proteja.”

Os excertos entre aspas são testemunhos de membros dasforças de segurança que, anonimamente, responderam a um inquérito sobre assédio moral difundido pelas duas maiores associações sindicais da PSP e GNR - a Associação Sócio-Profissional da Polícia de Segurança Pública (ASPP) e a Associação de Profissionais da GNR (APG-GNR) -, junto dos seus cerca de 15 mil associados.

Efetuado no âmbito da tese de mestrado “Assédio Moral nas Forças de Segurança: será preocupante?”, da autoria de Sandra Cerdeira de Campos Costa, cabo da GNR e mestranda em ciências forenses do Instituto Universitário de Ciências de Saúde (IUCS), o inquérito terá sido, de acordo com a orientadora do trabalho, Áurea Carvalho, o primeiro a abordar este fenómeno nas forças policiais portuguesas.

O objetivo, explica esta doutorada em Ciências Forenses (a mestranda, que defendeu a sua tese no IUCS a 17 de julho, não esteve disponível para falar ao DN), foi visibilizar o assédio moral nas polícias, garantindo que “não se fecha mais os olhos a esta matéria”. E que passa a haver “uma consciência real e quantitativa, indicadores científicos de que isto é algo vivido pelas forças de segurança”, de forma a “alertar as organizações para a situação, estimulá-las a pôr em prática estratégias de combate ao assédio moral no seu seio, melhorando a qualidade de vida nas nossas forças policiais”. Em suma, diz Áurea Carvalho, “cuidar quem cuida de nós, sociedade. Como poderão cuidar bem, se não estão bem?”

Mais de 77% dos polícias que se dizem vítimas de assédio não denunciaram
O projeto do estudo contava chegar aos mais de 44 mil efetivos da PSP e GNR, através da colaboração das corporações, mas estas recusaram. “Uma das forças de segurança nem chegou a responder ao nosso contacto”, diz Áurea Carvalho, que não recorda que justificação, se alguma, foi dada pela outra.

Foi assim necessário encontrar uma alternativa para chegar aos polícias, optando-se pelas duas principais associações sindicais e ajustando as expectativas para um universo que é um terço do total. Ainda assim, desses 15 mil potenciais respondentes apenas 302 participaram no inquérito, com 93 (30%) a assumir já terem sido, ou estarem a ser, vítimas de assédio moral. Desses, 10,8% reportaram ideação suicida, e 11,8% ideação homicida.

Na maioria dos casos (84,9%), o assediador indicado é um superior hierárquico, e o assédio é descrito como referindo-se a situações em que ou não é permitido ao respondente falar, ou é interrompido (77,8%); críticas ao trabalho (74,8%); calúnias e falatório “pelas costas” (58,3%). Com bastante menor expressão, há reporte de “ataques físicos leves, como advertência” (18,3%); ameaças de agressões (17,2%); “danos aos bens ou à viatura” (16,1%) e “agressões sexuais físicas diretas (7,5%).

As estratégias mais comummente adotada foi a de tentar evitar os agressores (34,4%), seguida do recurso à baixa médica (29%). Apenas 22,6% das reportadas vítimas de assédio efetuaram denúncia do facto, sendo que só num caso houve punição do assediador. Em cinco situações, a punição ou transferência recaiu sobre o denunciante; em 29 os superiores hierárquicos ignoraram a denúncia.

“Nenhum dos [64] participantes que não denunciou o assédio indicou os motivos para não o fazer. Desta forma, não existem resultados para apresentar e discutir, relativos a esta questão”, nota a tese, interpretando este silêncio: “Muitos elementos das forças de segurança não denunciam com medo de represálias, outros refugiam-se no álcool e na medida mais gravosa e irreversível, o suicídio. Segundo a Associação dos Profissionais da Guarda, em Portugal não existem registos oficiais públicos sobre o número de suicídios na GNR, apenas sendo divulgado que o número de suicídios nas forças de segurança é o dobro do da restante população (…).” E Sandra Cerqueira adverte: “As instituições deveriam procurar identificar o que leva os seus profissionais a adotar estes comportamentos muitas vezes de fim de linha.”

Precisamente, entre as consequências reportadas do assédio sofrido – nas quais, à cabeça, surgem “dificuldade em adormecer” (60,2%), “ansiedade” (58,1%), seguidas por sintomas como “nó na garganta” (28%), “fadiga permanente” (26,9%), “palpitações” e “crises de choro” (20,4%) e “aumento nos conflitos familiares” (22,6%) –, encontram-se, como já referido, ideações suicidas e homicidas, assim como “aumento do consumo de antidepressivos e ansiolíticos” (10,8%) e da “visão negativa dos outros e do mundo” (6,5%).

Reconhecendo, nas conclusões da sua tese, que os participantes no inquérito constituem uma amostra reduzida face ao efetivo total, Sandra Cerqueira considera que ainda assim este “proporcionou resultados muito úteis para que as respectivas instituições tomem consciência do fenómeno que têm dentro de portas e possam repensar muito bem as medidas imediatas para combater e prevenir as condutas nefastas que se definem como ‘hábitos e costumes’, mas que na realidade são comportamentos antiéticos.”

É que, argumenta, “se numa amostra de 302 participantes cerca de um terço já foram ou são vítimas de assédio moral, num universo total de cerca de 44367 elementos das forças de segurança portuguesas (…), provavelmente a percentagem seria igual, o que é assustador e alarmante.”

ASPP criou gabinete e email para receber denúncias
“O assédio moral existe todos os dias, quanto mais não seja o chefe a ralhar com alguém perante toda a gente – algo que no anterior regulamento disciplinar da GNR não era permitido, e desde a última alteração passou a ser. Há uma questão estrutural – nem toda a gente é um bom chefe, um bom comandante – não basta um curso, porque comandar pessoas não é para todos. Não é só o quero, posso e mando que faz um líder. E tudo isso junto com o restante – fracas condições de serviço, fracos salários – pode levar àquilo de que falamos muito, e que se esconde muito, que são os suicídios. Às vezes os suicídios sucedem justamente porque os guardas são maltratados no serviço. Muitas vezes o comando da GNR, e o próprio ministério, dizem que é por questões pessoais – não sei como fazem essa triagem, como veem isso…”.

O comentário é de César Nogueira, presidente da Associação de Profissionais da GNR (APG-GNR), que olha para a baixa taxa de participação neste primeiro inquérito sobre assédio como uma evidência do clima que se vive nas corporações: “Só pelo número das respostas, pode ver-se que é um problema que muitos têm receio em expor. Tanto mais que se trata, no caso da Guarda, de uma estrutura muito hierarquizada, militar… Sei que a camarada [Sandra Cerqueira, a autora da tese] tentou fazer o inquérito através da GNR, e recusaram. Só o não aceitarem, o não quererem fazer, só por si já diz muito. Por aí vê-se que querem esconder o que existe.”

Na ASPP, a Associação Sócio-Profissional da PSP, a consciência de que existe um problema de assédio na corporação e que é preciso trazê-lo à luz do dia levou à criação de um gabinete, com advogados e psicólogos, para tratar da questão, e à disponibilização, em maio último, de um endereço de email específico para que os polícias possam reportar, confidencialmente, tal tipo de situações. Foi também solicitada uma reunião com a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) – o órgão do Estado que fiscaliza as polícias – para a alertar para o fenómeno e apresentar algumas queixas. Ações, explica ao DN o presidente deste sindicato, Paulo Jorge Santos, que surgiram na sequência da receção pela ASPP de mails e reclamações relacionados com assédio.

Sobre a receptividade da hierarquia da PSP para abordar a questão, Paulo Jorge Santos é diplomático: “A PSP evoluiu muito nestes 30 anos, mas as resistências sempre existiram por parte da hierarquia, por isso é que colocámos isto na IGAI, onde as queixas estão a seguir o seu curso”.

Assumindo não serem para ele uma surpresa os resultados do inquérito associado à tese de Sandra Cerqueira, incluindo o facto de haver quem nas polícias se diga vítima de agressões,  e de assédio sexual físico, por parte de outros polícias – “Tivemos conhecimento de situações dessas. Em relação ao assédio sexual, durante uma conferência ouvimos mulheres que estão na PSP há muitos anos, há décadas, e ali, naquele ambiente protegido, tiveram coragem de falar de coisas das quais se calhar nunca tinham falado. Foi duro” – o dirigente sindical da PSP reconhece-se no entanto desiludido com a resposta à criação do gabinete e do email dedicado. “Os contactos que tivemos para o gabinete não correspondem ao que acreditávamos ser a dimensão do fenómeno”. Como o seu homólogo da AGP, associa o fraco retorno à "existência de muita reserva e resistência, por parte daqueles que são vítimas, em falar. Têm medo de fazer denúncia, é a ideia que temos.”

A esse medo junta-se, frisa César Nogueira, o facto de não existir uma entidade vocacionada para receção de denúncias deste tipo. “Nós não somos abrangidos pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), só temos a IGAI, que não serve para isso. É aliás uma das coisas em que muito temos batalhado, nós e a ASPP, é a necessidade de fiscalização da higiene e saúde no trabalho. Que não existe para as polícias. Já fizemos várias denúncias para a IGAI, e a IGAI o que faz é perguntar à GNR se aquilo se passa ou não. E a GNR, logicamente, vai dizer que não. A não ser que seja um caso público ou flagrante. Fora disso, não vai acontecer nada. Claro que pode haver denúncias de assédio que não são fundamentadas, às vezes temos a noção de que estamos a ser maltratados e não é assim, mas tem de haver uma estrutura externa, independente, que pode ser nos mesmos moldes da ACT, para fiscalizar, receber e investigar as denúncias, seja de assédio moral seja de condições de trabalho em geral, a começar pelas instalações”.

“Assédio está enraizado na cultura de trabalho policial”
Outra questão, prossegue o dirigente da APG-GNR, é a inexistência, no regulamento disciplinar da GNR (e no Estatuto Disciplinar da PSP) de qualquer alusão a assédio ou bullying. “Essas coisas não estão lá”, diz, “porque ainda temos uma cultura castrense muito vincada, ainda muito com base no que era a disciplina nas Forças Armadas, apesar de agora termos, pela primeira vez, um comandante oriundo da própria Guarda e não do Exército [trata-se de Rui Veloso, nomeado em agosto de 2023]. Os regulamentos têm de se modernizar, de se adaptar às novas realidades. É preciso tirar a cabeça da areia e ver que os problemas existem e é preciso resolver. O que se tem feito é enterrar a cabeça na areia, e depois quando acontece alguma desgraça é que se vai correr atrás do prejuízo”.

Questionado sobre se considera necessário que o bullying e o assédio sejam especificamente abordados num código ou regulamento da PSP, Paulo Jorge Santos hesita. “Admito que seja importante um código de conduta, mas no caso da PSP os mecanismos existem. O necessário na minha opinião é que as pessoas ganhem consciência do fenómeno e coragem para o expor. Porque se não denunciarem nada muda.”

A preocupação com o assédio moral, bullying, e outros tipos de assédio, como o sexual, nas forças de segurança está há muito presente em vários países. No Reino Unido, a Federação da Polícia de Inglaterra e Gales desde pelo menos 2017 que elabora materiais informativos explicando o que é bullying, como combatê-lo e como pode a federação ajudar. Já um dos maiores sindicatos britânicos do setor público, o UNISON, efetuou o primeiro inquérito sobre as atitudes do staff policial em 2002. Nessa altura, 28% dos respondentes assumiram que ou tinham sido vítimas de bullying ou tinham testemunhado bullying sobre colegas. Seis anos depois, repetindo o inquérito, 21% disseram ter sido vítimas e 26% assistido a situações de bullying sobre colegas. Em 2013, um relatório da Independent Police Commission (desde 2018 Independent Office for Police Conduct), órgão independente fiscalizador das polícias, reportou que, num inquérito efetuado no universo policial, 57% dos respondentes tinham experienciado bullying em alguma altura, e 30% sempre, ou parte do tempo.  

Depois de em 2013 o governo de Theresa May ter anunciado uma reforma no sentido de reforçar a integridade policial e pedido ao recém-criado College of Policing (mais um órgão independente que estabelece os padrões da profissão e partilha conhecimento sobre os desafios que esta enfrenta) para desenvolver um Código de Ética sobre os princípios e padrões da profissão e o comportamento profissional para as polícias de Inglaterra e Gales, o UNISON insistiu que os temas do bullying e do assédio tinham de ser nele abordados, o que sucedeu. O Código estabelece, nomeadamente, que “o comportamento e a linguagem dos polícias não podem ser percebidos como abusivos, opressivos, assediadores, vitimizadores ou ofensivos pelo público ou pelos colegas”.

Em 2015, o UNISON voltou a efetuar um inquérito sobre bullying e assédio aos seus membros do staff policial de Inglaterra, Gales e Escócia, obtendo 1015 respostas, a maioria das quais (84%) da polícia inglesa. Nesse universo, 6% disseram que o bullying é um problema muito grave no seu trabalho, 20% que é grave, 36% que é um problema menor e 38% que não é problema. Apesar de só 26% considerarem o problema grave ou muito grave, 53% afirmaram já ter sido alvo de bullying, e 16% que estavam naquele momento a sofrê-lo. 59% dos que não consideravam ter sido alvo disseram já ter testemunhado bullying sobre colegas.
A forma mais comum de bullying apontada foi a humilhação (63%), seguida por “excessivo criticismo” (56%) e vitimização (42%); a maioria (69%) disse não ter muita confiança, ou nenhuma, em que a organização fosse capaz de lidar forma justa com a situação – de resto, 77% afiançaram que nada tinha sido feito para lidar com o bullying nos últimos 12 meses.

Estes dados demonstram, diz o UNISON, que as mulheres têm mais tendência a apontar o bullying e a serem vítimas dele:  58% das mulheres disseram tê-lo sofrido, para 45,36% dos homens. A conclusão do sindicato é de que o comportamento assediador está profundamente enraizado na cultura de trabalho policial na Inglaterra, Gales e Escócia, sem que as corporações, sabendo-o, tenham sido capazes de lidar com o fenómeno eficazmente.

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Mensagem por dragao Seg 29 Jul 2024, 01:02

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