Matar ou morrer numa fracção de segundo. Histórias de polícias que mataram em serviço

Ver o tópico anterior Ver o tópico seguinte Ir para baixo

Matar ou morrer numa fracção de segundo. Histórias de polícias que mataram em serviço Empty Matar ou morrer numa fracção de segundo. Histórias de polícias que mataram em serviço

Mensagem por António Soares Dom 15 Jul 2012, 09:18

Matar ou morrer numa fracção de segundo. Histórias de polícias que mataram em serviço 3761575


Durante meses, o sonho repetiu-se. De noite, ao virar de uma esquina, Pedro dá de caras com o assaltante. Tinha-o perdido de vista poucos minutos antes, depois de quilómetro e meio de perseguição a pé. O pesadelo – “tão real” – prosseguia sempre da mesma maneira, com o agente da PSP a disparar dois tiros para o ar para intimidar o fugitivo. Ao terceiro disparo, sente-se a escorregar no meio da rua – demasiado inclinada – e a bala acerta em cheio na cabeça do homem. Teve morte imediata. Durante meses, Marco não conseguiu tirar da cabeça as últimas palavras que o colega de patrulha que matou acidentalmente lhe disse, já a esvair-se em sangue: “Vou morrer.” Durante meses, Sérgio, militar da GNR, não conseguiu sequer lembrar-se do que aconteceu depois de ter atingido um assaltante na cabeça, no meio de uma perseguição. Quando recuperou a capacidade de pensar, percebeu que os colegas o tinham levado para um posto de uma localidade próxima. Não se recorda do nome do lugar.

Desde 2003 e até ao início deste ano, a PSP registou 14 incidentes com armas de fogo de que resultaram vítimas mortais. Na PJ houve apenas um caso, no ano passado, em Leiria, quando um inspector-chefe disparou sobre uma mulher durante uma operação relacionada com narcotráfico. Já esta semana, um militar da GNR matou a tiro o ocupante de um carro em fuga. As associações das forças de segurança pedem mais e melhor formação de tiro e reivindicam o uso de equipamentos que diminuam o recurso às armas de fogo. Mas no terreno, dizem os polícias que mataram em serviço, há situações em que é matar ou morrer.

O SEGUNDO DECISIVO Marco matou um colega de patrulha num dia de Páscoa. A GNR tinha reforçado o patrulhamento em todas as estradas e a dupla tinha acabado de autuar um carro, em plena auto-estrada, por excesso de velocidade. “De repente vimos três motas a circular sem matrícula”, recorda o militar. Seguiu--se uma perseguição a 200 km/hora. Poucos minutos depois, e já numa estrada nacional, os motociclistas decidiram tomar caminhos diferentes. “Só um deles levava pendura e optámos por seguir esse, porque à partida teria menor mobilidade. Mandámo-lo encostar, levávamos a sirene ligada e demos vários disparos de advertência.” Nada que tenha intimidado o condutor. Pouco antes de uma rotunda, o motociclista inverteu a marcha. Marco saiu do carro e pontapeou a mota. O pendura foi projectado para a berma.“Prestei-lhe assistência e o meu colega foi ter com o condutor. De repente, percebi que o homem se preparava para tirar qualquer coisa do blusão de cabedal.” Sem pensar, o militar correu para a mota e agarrou-o por trás. “Desequilibrei-me com a força que ele fez, tinha a arma na mão e disparei sem querer”, recorda. Depois disso, Marco diz que não se lembra de muita coisa. “Sei que pedi apoio, mas não me recordo de nada do que disse. Aquilo ficou cheio de pessoas, lembro-me de vultos”, conta. O colega foi atingido nas carótidas. “Mas eu estava convencido de que não o tinha magoado... Ele disse-me que ia morrer. Eu disse-lhe que não, que é claro que não ia morrer.” Nesse dia até tinham estado a almoçar com as respectivas famílias e combinaram jantar a seguir ao serviço. Depois de o socorro chegar, Marco foi aconselhado pelos colegas a abandonar o local – podia haver um linchamento. A PJ foi chamada a fazer as perícias. E o relatório final não abonou em nada a favor do militar da GNR: “Dizia que eu tinha tido todas as condições para pôr a arma em segurança. Se calhar, se eu fosse da Judiciária as conclusões tinham sido diferentes”, diz. “Eu nunca podia ter posto a arma em segurança e sabe porquê? Porque aquilo que acabei de contar em minutos aconteceu numa fracção de segundo”, garante o militar, que acabou sentado no banco dos réus dois anos depois do incidente. “Foi a pior tortura. É ser obrigado a recordar e a verbalizar, vezes sem conta, tudo aquilo que só se quer esquecer.” No fim de tudo, concluiu-se que o disparo, afinal, foi mesmo acidental. Já passaram oito anos, mas o militar da GNR garante que há coisas que o tempo não pode apagar em definitivo. “Basta ver um carro do Trânsito e lembro-me, basta ver, na rua, uma barba parecida com a que ele usava e lembro-me. Às vezes, as últimas palavras que me disse chegam-me do nada.” Para trás ficaram meses a fio a calmantes, demasiadas noites mal dormidas, o lidar com a “pressão” dos jornalistas e até com uma certa curiosidade mórbida de colegas e gente conhecida: “Você é aquele militar que matou fulano, não é?” A GNR arranjou-lhe um psicólogo e um advogado. Mas o causídico avisou logo no primeiro dia que não se sentia à vontade para o defender. “Resultado: tive de arranjar o meu próprio defensor e pagar tudo do meu bolso”, conta. Por causa do episódio, Marco nunca mais quis voltar à parte operacional da GNR. “E hoje sou o primeiro a dizer aos meus colegas que andam no terreno que, por vezes, é preferível deixar o criminoso fugir. É melhor, porque nunca se consegue prever como é que as coisas correm e, se correrem mal, vamos parar ao banco dos réus”, justifica. Na polícia vai-se preso por ter cão e por não ter. “Se os deixamos fugir somos maus polícias, mas se actuamos no cumprimento do nosso dever também somos crucificados”, garante.

O AZAR No dia em que matou um assaltante que já tinha estado preso, considerado perigoso e responsável por uma onda de roubos violentos, Pedro recusou a ajuda psicológica disponibilizada pela PSP. Seis anos depois, o agente diz que se arrepende. “Agora vejo aquilo por que passei a seguir... vinha-me tudo à memória, todos os dias, em tempo real. Talvez precisasse mesmo de ajuda naquela altura”, admite. Durante meses, Pedro teve pesadelos com o momento da morte. “Com uma nitidez assustadora.” Nos primeiros tempos, o mais difícil é gerir a culpa e a revolta. “Porquê tanto azar?”, perguntava-se. É que nesta história tudo não passou de uma infeliz coincidência. Mais de duas dezenas de agentes da PSP estavam empenhados numa verdadeira caça ao homem. Pedro já tinha corrido mais de um quilómetro e meio atrás do suspeito. “Era de noite e a dada altura deixei de o ver. De repente, esbarro com ele quase de frente”, recorda. Esta é a primeira coincidência. “Dei-lhe ordem de paragem, mas ele continuou a correr. Para o intimidar, dei dois tiros para o ar”, conta. Só que ao terceiro disparo, o agente da PSP tropeçou – a rua era bastante inclinada – e o tiro acertou na cabeça do assaltante. Teve morte imediata. “Pensei que o meu mundo ia ruir. Pensa-se sempre no pior. Quer dizer... naquele momento eu não pensei que fosse expulso da polícia, mas à medida que fui caindo em mim, nas horas seguintes, percebi a gravidade das consequências, mesmo tendo sido sem intenção.” O julgamento demorou três anos a chegar. “Não houve um único dia em que não tenha pensado naquilo. Já tinha 17 anos de polícia. Mas isto não é uma questão de experiência, é uma questão de sorte, é o que tem de acontecer”, garante. Pedro acabou por ficar sem ordenado e suspenso de funções durante nove meses. A “salvação” foi o fundo de solidariedade que a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP) criou em 2006 para apoiar agentes suspensos por razões disciplinares. O sindicato pagou-lhe os ordenados e, em troca, o polícia teve de se apresentar todos os dias na sede para trabalhar no que aparecesse. Pedro foi readmitido pela PSP, mas admite que há coisas que não se esquecem. “E hoje penso que, atendendo ao desenrolar da situação, devia tê-lo deixado escapar”, diz.

MATAR COM MEDO DE MORRER Há processos mentais que são quase inevitáveis quando um polícia mata acidentalmente. Sérgio, militar da GNR com mais de 20 anos de casa, não esconde que continua a pensar como teria sido se, naquele dia, um amigo não lhe tivesse telefonado para o número pessoal a dar conta da localização de três brasileiros procurados há 48 horas pelas autoridades por vários assaltos violentos. Ou como teria sido se naquela manhã não estivesse de serviço. No dia anterior, os assaltantes tinham-se cruzado com uma patrulha da GNR. Dispararam e quase mataram um dos militares. Depois de receber o telefonema, Sérgio pediu reforços. Pegou num colega e foram andando para o local.

Encostaram o jipe à berma e esperaram pelos suspeitos – que chegaram pouco depois, numa carrinha roubada e de caçadeiras em punho. “O meu colega deu dois tiros para o ar e eu dei ordem para fazer fogo contra a viatura. A ideia era atingir as rodas ou o radiador, para os imobilizar”, recorda. O terceiro tiro atingiu um dos ocupantes na cabeça. “Foi tudo muito rápido. No terreno é preciso pensar rápido, em fracções de segundos. Não há tempo para falar ou pensar. Há que reagir e é difícil disparar contra alvos em movimento. Eles estavam dispostos a tudo. Ali era matar ou morrer”, garante. Sérgio foi constituído arguido. As conclusões da Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) demoraram meio ano a chegar. Provou-se que o disparo aconteceu em legítima defesa. Antes disso, foi preciso lidar, em casa, com dois filhos pequenos e uma mulher desesperada. “Ela reagiu muito mal a tudo o que tinha acontecido e eu próprio às vezes pensava que, apesar de ter agido de acordo como o meu dever, aquele homem era um ser humano e perdeu a vida. A verdade é essa”, confessa.

IMPREVISÍVEL O sucesso ou o insucesso de uma operação ou a consequência de um disparo são difíceis de prever no terreno. “A teoria é muito diferente da prática, que é sempre imprevisível”, garante António, um agente da PSP que baleou um assaltante no meio de uma perseguição na zona da Grande Lisboa. O rapaz ficou com a bala alojada na cabeça, mas sobreviveu e sem mazelas. “Os médicos, no hospital, ficaram interessadíssimos no caso... não sabiam como era possível”, conta. Na verdade, houve uma explicação lógica. António disparou com a arma pessoal, menos letal que as usadas pela PSP. Só por isso é que o jovem sobreviveu. No entanto, o agente não se livrou de um processo interno. “Porque na polícia, em trabalho, só podemos usar as armas de serviço.” O caso acabou arquivado porque se provou que se salvou uma vida. “São fracções de segundo. É complicado perceber se se dispara ou não. As pessoas que nos julgam nunca estiveram no terreno e não compreendem o que é ter de reagir instantaneamente”, diz.

João, outro agente da PSP, já baleou dois cidadãos. Nenhum deles morreu. “Temos de nos conformar com o uso da arma. Faz parte do risco da nossa profissão”, garante. Um dos suspeitos foi ferido com “alguma gravidade e o polícia admite que o resultado poderia ter sido ainda mais grave. “Mas no momento do disparo só pensei numa única coisa: eu sou polícia e esta é uma situação que será sempre recorrente na minha vida profissional para proteger a sociedade”, diz.

CONSEQUÊNCIAS Polícias e associações de polícias garantem que nenhum agente mata propositadamente. “Dispara-se para intimidar ou para se tentar parar uma fuga”, diz o presidente do Sindicato Nacional da Polícia (Sinapol), da PSP. Helder Andrade, do Sindicato dos Oficiais de Polícia, também da PSP, vai mais longe e garante que nenhum agente gosta, sequer, de “recorrer à arma”. “Quando um polícia pega numa arma de fogo, tem milésimas de segundo para decidir. E é dessa decisão que depende o sucesso da operação, a sua integridade física e a de quem está do lado de lá”, sublinha Paulo Rodrigues, presidente da ASPP. Quando um polícia se vê envolvido num incidente com armas de fogo de que resultam vítimas é aberto um processo interno conduzido pela IGAI. As sanções do ponto de vista disciplinar – e caso o processo não seja arquivado por se concluir que o disparo foi efectuado em legítima defesa ou sem dolo – podem ir da suspensão de funções até à expulsão da polícia. Paralelamente, o agente pode ter de responder criminalmente em tribunal. Em último caso, pode acabar condenado a uma pena de prisão efectiva. No caso da PSP, desde 2003 foram aplicadas penas de suspensão a sete agentes. Um foi condenado ao pagamento de uma multa e três viram os seus processos arquivados. Em tribunal, os polícias queixam-se da falta de percepção, por parte dos magistrados, do que é o trabalho no terreno. “Na Holanda, por exemplo, os juízes fazem treinos técnico-policiais, para terem a percepção real do trabalho da polícia”, exemplifica Armando Ferreira do Sinapol, que acrescenta: “Os polícias decidem em segundos, enquanto que os juízes demoram meses. E essa nossa reacção imediata no terreno nem sempre é tida em conta.”

As três forças de segurança têm estruturas montadas para prestar apoio psicológico aos agentes que se vejam envolvidos nestas situações. “Não é fácil ultrapassar o trauma e há casos de colegas que demoram anos a recuperar”, garante Pedro Magrinho, presidente da Federação Nacional dos Sindicatos de Polícia (Fenpol). “Há uns anos, a PSP recuava muito na questão do apoio. Hoje já vai existindo, mas muitas vezes é o próprio agente o primeiro a recusar a ajuda”, diz Paulo Rodrigues, que defende a necessidade de maior apoio dentro da PSP, mas do ponto de vista jurídico. “Depois de balear alguém, a pessoa fica destroçada e não sabe, nem tem cabeça para pensar, como se pode defender. Seria preciso um acompanhamento jurídico continuado e desde o primeiro momento até ao término do julgamento”, a.

Também há quem defenda, nas polícias, que o recurso às armas de fogo poderia ser menor se existissem outros equipamentos. “Lagartas e sistemas de comunicação integrada e georreferenciada”, exemplifica o presidente da Associação Nacional de Oficiais da GNR. Para outros, a culpa dos incidentes com armas de fogo reside na formação que é ministrada dentro das polícias. “Ainda não é praticada em alvos em movimento e falta alguma formação de continuidade”, explica a Associação dos Profissionais da Guarda. José Alho, da ASPIG, também da GNR, acredita que a formação é “demasiado rápida, essencialmente por falta de verbas”. António Ramos, do Sindicato de Profissionais de Polícia, da PSP, diz mesmo que, devido às restrições financeiras e ao preço das munições, há agentes “que só fazem tiro uma vez por ano”. Mas Peixoto Rodrigues, representante do Sindicato Unificado da PSP, não concorda que o problema seja a formação. “Neste momento, a polícia está muito bem servida a nível de formação”, garante.

Com Márcia Oliveira.

* Todos os nomes são fictícios e algumas datas foram propositadamente alteradas

http://www.ionline.pt/portugal/matar-ou-morrer-numa-fraccao-segundo-historias-policias-mataram-servico

* È sempre importante sublinhar o associativismo.
António Soares
António Soares
1º Sargento
1º Sargento

Masculino
Idade : 60
Profissão : GNR
Nº de Mensagens : 1190
Mensagem : mea mater, mea vita, Canes timidi vehementius latrant
Meu alistamento : Aqui podes colocar o ano do teu alistamento!(Facultativo)

Ir para o topo Ir para baixo

Matar ou morrer numa fracção de segundo. Histórias de polícias que mataram em serviço Empty Re: Matar ou morrer numa fracção de segundo. Histórias de polícias que mataram em serviço

Mensagem por иuησ Dom 15 Jul 2012, 09:35

Excelente artigo.
иuησ
иuησ
Tenente-Coronel
Tenente-Coronel

Masculino
Idade : 47
Profissão : GNR Cavª
Nº de Mensagens : 14504
Mensagem : Dirigente APG/GNR

Qui pugnat perdere potest. Qui non pugnat iam perdidit!


Meu alistamento : 2000/2001 - AIP

https://www.apg-gnr.pt

Ir para o topo Ir para baixo

Ver o tópico anterior Ver o tópico seguinte Ir para o topo

- Tópicos semelhantes